quinta-feira, 8 de dezembro de 2011

Conversa com Ricardo Peres

Conversa com Ricardo Peres

Ricardo Peres é paulista, pianista, com estudo no exterior. Iniciou carreira artística em 1982 e viajou aos EUA e Canadá, posteriormente Suíça. Tem 5 gravações como pianista solo.

A partir de 2000 é também compositor e produtor musical. É um recém-filiado ao PCdoB. Culto e antenado, tem grande entusiasmo e cultura política.

Ele encabeça uma Carta Aberta aos Amantes da Música, com uma interessantíssima abordagem das funções da música. Não deixe de lê-la, junto com esta entrevista.
Ricardo, que sentido tem a Carta Aberta aos Amantes da Música, como nasceu e a quem aglutina esse movimento?

Existe uma linhagem de autocrítica nas artes musicais que foi consolidada com Robert Schumann (1810 – 1856) e teve seguimento com o debate estético de protagonistas como Liszt, Wagner, Busoni, Schoenberg e, mais recentemente, o pianista canadense Glenn Gould. A idéia é manter a autocrítica viva. A carta aberta é uma tentativa de despertar o público para o potencial presente da Música.

Você fala em música de audiência, para audiências. É também uma abordagem do papel social da música. Mas e do ponto de vista da qualidade do fazer artístico, do valor musical da produção?

A Música de maior alcance e expressão sempre foi conseqüência de uma cultura musical robusta, e a cultura germânica é a maior demonstração disso. A sinergia criada entre produção musical e audiência eleva a qualidade de ambas.

Chico Buarque chegou a provocar dizendo que talvez o formato canção chegou a termo. Que você acha dessa opinião singular?

O ápice da forma canção ocorreu com Franz Schubert (1797 – 1828) cuja obra contava com mais de 600 lieder. É possível que o declínio da forma canção tenha começado com o declínio da música tonal – sinalizado pelo dodecafonismo (música de 12 tons) de Schoenberg no período entre as guerras do século XX – uma vez que a idéia de uma “melodia dodecafônica” não faz qualquer sentido. Depois disso foi “morro abaixo”…

Brasil, Lula, política cultural. Você viveu muito tempo no exterior. Como aquilata a atual realidade brasileira no terreno da cultura?

A produção cultural é gerativa e ocorre na proporção em que a liberdade de expressão e os instrumentos de produção existem. Nesse sentido o Brasil melhorou muito. Mas é preciso avançar, pois a política cultural poderia oferecer soluções relevantes para abordar os desafios sociais do século 21.

Carta aberta aos amantes da Música

(Por Ricardo Peres)

Amante da Música,

Nem sempre a Música foi tocada com o objetivo de entreter o público, como ocorre hoje em dia na maioria dos eventos musicais da sociedade, de grande e pequeno porte, pagos, gratuitos, eruditos e populares. Até a Música se tornar uma commodity registrada no século XX, a prática musical já havia passado pelo sistema de educação da Grécia antiga, por rituais xamânicos de incontáveis povos indígenas, tribos nômades dos desertos e esquimós do pólo norte, liturgias de igrejas e monastérios, eventos sazonais em castelos e vilarejos, tratamentos médicos europeus, etc. E mesmo no caso da obra dos grandes compositores desde Palestrina, a proposta era, em geral, de natureza estética e não de entretenimento.

De fato, durante mais de dois milênios apenas uma fração da produção musical do mundo foi utilizada para fins de entretenimento. A Música era rara. Pouca oferta e muita demanda concentravam o valor da produção musical num patamar elevado e de acesso restrito. Seja no caso das orquestras da nobreza européia, de músicos medievais itinerantes, do cidadão grego ou dos pajés, a produção musical era uma atividade artesanal, de pequena escala, e bem mais difícil do que é hoje em dia. Nesse contexto, a experiência do ouvinte envolvia uma relação bem mais criteriosa com a Música.

Mas entre maio e julho de 1877, em plena revolução industrial, Thomas Edison resolveu se dedicar ao desenvolvimento de um “método automático de registrar mensagens de telégrafo em um disco de papel”. Quis o destino que esse projeto evoluísse em um outro projeto, cujo resultado foi anunciado em 21 de novembro daquele mesmo ano: o primeiro gramofone. Desse evento nasceu a indústria fonográfica do século XX, com as grandes gravadoras, artistas internacionais, equipamentos de produção e reprodução, lojas e consumidores que se proliferaram e criaram um mercado multimilionário. Ao final do século, a revolução digital chegou e tornou o que já era um legado musical considerável em uma galáxia de áudio digitalizado. Esse conteúdo hoje reside na Internet em quantidades astronômicas, com fluxos de compartilhamento enormes, ativos 24 horas por dia numa rede planetária com um bilhão e meio de usuários.

Como se pode ver, o paradigma musical da humanidade mudou bastante em termos de produção, distribuição e aplicação no curso das últimas poucas gerações, mudança que tem causado muito debate por ser tão radicalmente inovadora e, mais recentemente, tão acelerada. Alguns dizem que o denominador de qualidade caiu, diluindo o valor da arte musical. Outros discordam e dizem que é preciso ampliar o acesso horizontalizado para todas as artes daqui para frente. Enquanto isso, a lucrativa indústria fonográfica, viabilizada por Thomas Edison e estruturada na lei de copyright, foi geometricamente reduzida com o aparecimento das tecnologias de compartilhamento de arquivos digitais (P2P), assim causando ainda mais debate.

Sendo as mudanças discutidas de origem estrutural e sistêmica, cabe uma análise visando identificar oportunidades novas, já que o novo paradigma pede por um novo enfoque; uma forma mais atualizada de perceber a Música, que nos permita, individual e coletivamente, potencializar e usufruir plenamente de seus benefícios no século 21.

Esse debate deve ser realizado em rede, compartilhando conhecimentos e experiências, formando um corpo de conhecimento novo e aberto a todos os interessados, a partir de uma avaliação histórico-transversal das possibilidades musicais do presente que se fazem sentir em quatro áreas principais: Sociedade, Educação, Saúde e Estética. Dessa forma, seremos induzidos à criação de instrumentos sociais úteis que podem subsidiar a nova geração de políticas públicas culturais.

No começo…

Foi no século VI a.C. que Pitágoras, matemático e filósofo grego mais conhecido pelo Teorema de Pitágoras*, verificou que o som é produzido graças ao movimento do ar e que quanto mais rápido o movimento, mais agudo é o som. Salvo engano, foi a primeira lei da física a ser descoberta e dominada pelo homem. O filósofo também observou que duas cordas da mesma espessura com tensões iguais estabelecem uma correlação inversa entre comprimento e produção sonora. Ele anotou as seguintes proporções:

a) Uma corda de comprimento X/2 produz o intervalo de oitava (dó – dó) acima da nota produzida pela corda de comprimento X;
b) O intervalo de quinta (dó – sol) tem a razão de 2 para 3 no comprimento da corda;
c) O intervalo de quarta (dó – fá) tem a razão de 3 para 4 no comprimento da corda.

Essa relação físico-matemática criou vínculos íntimos com a astronomia, a religião, a medicina, a filosofia, a poesia, a métrica, a dança e a pedagogia na sociedade dos gregos. A Música chegou a ser valorizada a ponto de levar Platão a escrever: Se me fosse possível escolher as canções e melodias de um povo, eu não me preocuparia tanto com seus legisladores. Além disso, encontramos referências bíblicas revelando a aplicação medicinal da Música, como se verifica em 1Samuel 16,23: David tocava sua harpa para afastar o espírito do mal que se apoderava de Saul, que então se acalmava e melhorava. Ainda em outras partes do mundo, há tempos que músicas estruturadas em escalas pentatônicas e construídas com sons de baixa freqüência são usadas no tratamento de pacientes devido ao efeito calmante e relaxante.

Já então se notava que o som, um fenômeno físico-acústico e matéria-prima da Música, afeta o sistema nervoso autônomo que é a base da reação emocional. Já então usavam aspectos musicais de densidade, tensão e relaxamento como agentes de desenvolvimento intelectual, motor e afetivo: a Música é movimento e assim ecoa movimentos em quem a escuta. A ação do ritmo se estende por nossa respiração, circulação, digestão, oxigenação e dinamismo nervoso; atua em nossa vida biológica e psicológica, robustece e enfraquece a energia muscular, reduz e retarda a fadiga.

Aprendeu-se por experiência que as respostas fisiológicas ao som estão ligadas às vibrações sonoras enquanto que as reações psicológicas estão ligadas às relações sonoras, o que significa que a Música faculta a associação e integração de experiências. Também se aprendeu que as dimensões concretas e quantitativas como duração, compasso, pulso, proporcionalidade e velocidade das representações sonoras possibilitam o desenvolvimento do pensamento lógico compartilhado entre a Música e a Matemática.

Modernidade e adiante…

Avançamos muito conforme os métodos de pesquisa se desenvolveram e hoje sabemos que o estímulo musical é captado pelo recém-nascido já na segunda ou terceira hora de vida por meio da intensidade do som. Do quarto mês em diante, o estímulo auditivo já induz efeitos qualitativos (agradáveis ou desagradáveis), período em que os bebês se tornam capazes de igualar altura, volume e contorno melódico das canções entoadas pelas mães, se adequando à estrutura rítmica das canções ouvidas.

No século XVIII de Bach, Leibniz produziu o tratado filosófico, A Música como Medicina. No século XIX de Brahms e Wagner, o médico francês Hector Chomet escreveu, A Influência da Música na Saúde e na Vida, uma narrativa sobre os tratamentos que praticava com o recurso auxiliar da Música. A partir de 1935, problemas de natureza cardíaca, ortopédica e neuropsíquica passaram a integrar a Música nos procedimentos de tratamento do Bellevue Hospital (EUA). Enquanto isso, a notável enfermeira estadunidense, Harriet Ayer Seymour, desenvolvia o Método Seymour e criava a National Foundation of Music Therapy em 1941. Em 1950 veio a National Association of Music Therapy, objetivando o uso da Música na medicina e a formação de profissionais em terapia musical. Oito anos mais tarde, na Inglaterra, foi fundada a Society for Music Therapy and Remedial Music (mais tarde rebatizada de British Society for Music Therapy).

Em 1994, a Teoria das Inteligências Múltiplas de Howard Gardner estabeleceu uma analogia estrutural da Música por entender a interface musical como semiótica, hábil a fazer contraponto com diferentes linguagens e pontuar aspectos sintáticos, rítmicos, melódicos, harmônicos e formais encontrados no caminho do aprimoramento humano. Com efeito, as conclusões de Gardner se provam bem embasadas na jurisprudência da esfera educacional, incluindo o método Orff, Shafer e o conceito de paisagem sonora, a educação audio-perceptiva de Emma Garmendia, Koellreutter e outros.

Hoje em dia sabemos que o hemisfério esquerdo do cérebro analisa no tempo e que o hemisfério direito sintetiza no espaço. Também sabemos que o corpo caloso, a massa interligando os dois hemisférios, tem a função de permitir a comunicação entre ambos, propiciando a transmissão da memória e do aprendizado. Segundo pesquisas recentes (2008) do professor Daniel Levitin da McGill University no Canadá, o corpo caloso de pessoas que praticam a Música é significativamente maior com relação às pessoas que não praticam a Música.

Afinal, tudo indica que vamos continuar descobrindo cada vez mais sobre o fenômeno físico-espiritual chamado Música, que há tanto tempo nos emociona, alivia, educa, traz esperança, cura e entretém. Esperamos avançar através do compartilhamento de saberes em rede, com a proposta de agregar amigos e conhecimentos visando o desenvolvimento do ser humano por meio da Música.

Ricardo Peres
Música21
www.musica21.ning.com

*O quadrado da hipotenusa é igual à soma dos quadrados dos catetos, ou: c² = a² + b²

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